A Idade do Jazz-Band, António Ferro

Antes de continuar, será talvez a altura de desfazer alguns equívocos: A Idade do Jazz-Band de António Ferro (1922), que é frequentemente citado como o livro anunciador do Jazz em Portugal, não é um texto sobre Jazz ou de Jazz ou sequer por onde passe o Jazz; A Idade do Jazz-Band é um panfleto modernista, onde Ferro se insurge contra o marasmo cultural e o provincianismo da sociedade portuguesa.

Em rigor nem sequer um livro, sete páginas, texto de uma conferência realizada, pela primeira vez, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro em 30 de Julho de 1922, e ainda nesse ano em São Paulo e em Belo Horizonte, e só depois em Lisboa, a apresentação de A Idade do Jazz-Band era interrompida, numa encenação provocadora, por uma banda de músicos negros tocando instrumentos de sopro ao ritmo de uma bateria rudimentar - formação que era designada na altura por jazz-band - e uma bailarina.

«No Jazz-Band, como num écran, cabem todas as imagens da vida moderna. Cabem as ruas barbáricas das grandes cidades, ruas doidas com olhos inconstantes nos placards luminosos e fugidios, ruas eléctricas, ruas possessas de automóveis e de carros, ruas onde os cinemas maquilhados de cartazes têm atitudes felinas de mundanas, convidando-nos a entrar, ruas ferozes, ruas panteras, ruas listradas nas tabuletas, nos vestidos e nos gritos… Cabem as mulheres, as mulheres improvisadas pelo próprio Jazz-Band, mulheres onde a cabeça, o tronco e os membros, somam três corpos.

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Cabem os homens que cabem sempre onde cabem as mulheres … Cabe toda a Arte, a arte de hoje que chora, que grita, que ri, que sabe beijar, que sabe vibrar, que sabe morder… E cabe a própria Vida, a vida industrial que é um Jazz-Band de roldanas, de guindastes e motores, a vida comercial que é um sud-express, a vida intelectual onde as palavras pensam por si… Toda a Vida, toda a Arte, todo o Universo, cabem no Jazz-Band, onde eu próprio caibo…»

O texto fala das jazz-bands a par dos ballet russes, e da arte e da cultura que faltava em Portugal e que Ferro tinha conhecido nos grandes centros cosmopolitas europeus. Aliás este é o texto onde pela primeira vez aparece a referência às jazz-bands, ao passo que os ballet russes já eram profusamente e laudatoriamente citados noutros textos - «Portugal ou será um ballet russo – ou não será…», escrevia no Diário de Lisboa. E porque as jazz-bands tornariam, ao que conheço, apenas por duas outras vezes aos textos de António Ferro, poderá até com propriedade depreender-se que elas só apareceram porque necessárias para dar ênfase ao espectáculo.

O modernismo que proclamava tinha mais detractores que apoiantes, e mesmo o modernismo e o futurismo estavam longe de ser consensuais, mesmo entre os intelectuais (Menotti dei Picchia: «Já se tem quase uma receita para ser artista moderno: basta falar em jazz-band, aeroplano, velocípede, frigorífico…»); e se a forma provocadora de A Idade do Jazz-Band está até bastante de acordo com a postura dos modernistas (e futuristas) da altura, como é exemplo o Manifesto Anti-Dantas de Almada Negreiros; e, na inexequibilidade de fazer desfilar frigoríficos, ou mesmo os Ballet Rouses, que melhor que pôr um grupo de pretos a tocar uma música exótica a interromper a conferência?

«Isto quer dizer que ele vai falar de si próprio de si e da sua Arte. Porque ele é a sua Arte mesma e a sua Arte é um jazz-band. Um jazz-band completo, um jazz-band autêntico, um jazz-band do Hawai; mas um jazz-band civilizado, modernizado, estilizado, filtrado pela Broadway, um ]azz-band bem Tio Sam, bem grill-room, com saiotes de palha, espeloteamentos e sapateados de Jig.»
Guilherme de Almeida, na apresentação da conferência em São Paulo

As preocupações do modernaço Ferro não eram o Jazz, mas o atraso cultural da sociedade portuguesa, e brasileira, e ele contrapunha a fervilhante actividade cultural e artística – na pintura, na música, nos costumes, na política e na sociedade, mas também «nocturna», das capitais da Europa. Ferro já tinha por esse tempo algum crédito, até pela circunstância de ter sido o editor involuntário da Orpheu, e ele era inequivocamente um tipo culto e um escritor e ensaísta profícuo. Interessava-o a modernidade, a arte, o exótico e a globalização que se prenunciava e que faltava a Portugal … e o seu enoooorme ego.

O mundo saído da Grande Guerra estava em convulsão, e em Portugal a Primeira República vivia também tempos conturbados, e muitos futuristas acabariam por ser atraídos pelos movimentos fascistas e nazistas (Marinetti…). O modernismo de António Ferro era afinal fugaz e ele tornou-se, logo pouco depois, o ideólogo do Estado Novo, revelando que o único elemento constante da sua personalidade era mesmo o gosto pelos holofotes («Isto quer dizer que ele vai falar de si próprio»). O modernismo virou nacionalismo – folclorismo - e ele demonstrar-se-ia o mais acérrimo opositor da modernidade, na sociedade, na cultura e na política.

Mas António Ferro não me interessa. Interessa-me que ele não escreveu nenhum livro sobre Jazz e mesmo a referência à jazz-band não mais era que um título oportunista (façam o favor de ler o texto para confirmar o que eu digo). Nada no que escreveu leva a crer que António Ferro fizesse a mínima ideia do que era o Jazz, A idade do jazz-band não é um livro sobre Jazz, nem sequer é um livro prenunciador do Jazz, qualquer que seja a perspectiva, e a tese apenas serve para caucionar a ficção histórica de que havia Jazz em Portugal nos anos 20.

O equívoco tem no entanto gerado várias referências mais ou menos bem intencionadas, muitas sugerindo – ou afirmando - a existência de Jazz em Portugal, já nos anos 20. Ora também isso está por provar.

Que alguma coisa chegou a Portugal, bastaria a introdução da bateria na música para o comprovar. Mas tudo o resto são referências equívocas dispostas de forma conveniente para construir uma tese, mas que se revela inconsistente se analisada de perto.

A Portugal chegou não o Jazz, mas a espuma: a noite lisboeta (não Lisboa) procurava modernizava-se, adaptar-se às novas modas da Europa e da América; mas tudo o que chegou (à noite lisboeta) foi a moda do charleston, do foxtrot ou talvez do swing (e qualquer amante de Jazz sabe que swing e swing são coisas diferentes), a música de dança, alguns espectáculos das Black Follies, o exotismo negro sem contexto.

«O jazz teve a sua primeira morada em Portugal na famosa Lisboa dos nightclubs dos anos 20…» e «Lisboa … expôs-se em meados dos anos 20 ao jazz, expressão musical que logo lhe ocupou as ruas e as vielas e também as avenidas, sobretudo as do pensamento…»; escreve João Moreira dos Santos entusiasmado: as ruas e as vielas!!!! - na introdução do Roteiro do Jazz na Lisboa dos anos 20-50 («transcrição para papel dos conteúdos dos passeios pedestres homónimos que inaugurei em junho de 2005 com o Centro Nacional de Cultura…»), para de seguida enumerar uma dúzia de nightclubs e dancings onde se dançava … charleston, foxtrots, valsas, tangos…, ou onde se apresentavam espectáculos de bailarinos negros («o “batuque civilizado” das Black Follies», como escrevia Ferro). Que Moreira dos Santos tenha exata consciência do equívoco que ele próprio cria, não teremos dúvidas: «Sobre a existência de jazz ao vivo nos clubes, importa antes de mais explicitar duas questões. A primeira prende-se com o facto de o termo jazz se confundir nos anos 20 … com a bateria, instrumento musical de percussão cujo executante era, por isso mesmo, apelidado de jazz-bandista. A segunda tem a ver com o jazz ser então essencialmente uma música de dança…» e «É, portanto, necessária alguma reserva e cautela quando se catalogam as bandas que atuavam nesses recintos, fossem elas orquestras estrangeiras … mas também orquestras nacionais»; conclui na introdução do opúsculo. Ou seja, Moreira dos Santos tem dúvidas de que a música praticada nesses clubes fosse Jazz (e não, o Jazz não era música de dança, mas música que eventualmente também se dançava, mas não era construída para dançar, ao contrário do charleston ou do foxtrot), mas não se coíbe de escrever não sei quantos livros a afirmar o Jazz em Portugal já nos anos 20.

Outra oportuna recorrência nos livros de Moreira dos Santos são os saltos temporais: são comuns as referências a factos apócrifos entre os «talvez» e «é provável», seguidos de outros ocorridos duas ou três décadas depois. Ou ainda a sistemática invocação da negritude como sinónimo de Jazz, onde são exemplos a insistência dos espectáculos de bailarinos negros ou a inclusão do livro O Preto do Charleston de Mário Domingues ou ainda um outro livro-disco (dele próprio, Moreira dos Santos) dedicado à bailarina-cantora negra Josephine Baker na exposição na Biblioteca Nacional de 2015 a propósito do centenário do livro Jazz em Portugal – de que a conferência de António Ferro era o primeiro título. Mas no DVD ou no livro não há a inclusão de um exemplo da Josephine Baker cantora de Jazz (simplesmente porque ela o não era), e o facto mais significativo da sua passagem por Portugal terá sido um almoço no restaurante Primavera do Bairro Alto, onde foi perseguida por uma legião de pacóvios jornalistas.

O problema neste tipo de ficções construídas em teoria é que têm um efeito de reprodução porque ninguém se dá ao trabalho de ir verificar as fontes. Ora as fontes que Moreira dos Santos invoca não sustentam a tese da chegada do Jazz a Portugal nos anos 20, e o Jazz triste à Portuguesa de que fala Triska n’”As Férias das Elegantes” (1926) que teria - «talvez», «é provável» - existido nos 12 ou 13 nightclubs de Lisboa, morreria logo após a chegada de Salazar (e Ferro) ao poder, no golpe de 1928.

E uma vez mais sobre a capacidade de auto-reprodução do disparate, construído sobre algumas parcas e equívocas referências, espaçadas de anos e décadas, na imprensa, observamos que se teceram loias ao António Ferro amante e coleccionador de Jazz e ao Jazz em Portugal na década de 20 - fontes, zero, referências zero; imaginação farta.

Mais avisado, Hélder Martins, em Jazz em Portugal (1920-1956), adaptação da sua tese de mestrado em Ciências Musicais, parte dessas mesmas fontes para as questionar, evidenciando o óbvio: os clubes - «Estes poucos (16) clubes lisboetas são uma cópia dos existentes nos grandes centros europeus»; a rádio - «Quanto à música Jazz, depois de analisadas as programações, não se pode dizer que fosse completamente ignorada…» e Martins refere vários temas de dança (Doing the boom boom…), foxtrot, one-step, shimmy…; a imprensa – um artigo pacóvio (Como Nasceu o Jazz-band) sobre a origem do Jazz nos EUA, supostamente inventado por um minhoto, ou um outro (Na Idade do Jazz), uma diatribe conservadora assinada por Miriam, onde se associa (até na ilustração das garçones) o Jazz com o foxtrot, e o autor lamenta que os primeiros estudos eruditos nacionais sobre o Jazz ainda tenham tardado 25 anos… «até que surgisse alguém interessado em divulgar “a verdadeira música de Jazz”», que como sabemos, documentado, seria feito por Luis Villas Boas, já nos anos 40; o cinema (mudo) – «o Jazz dos anos 20 talvez tenha sido ouvido nas exibições desses filmes, no entanto, não há certezas», «em Portugal, se foram exibidos esses filmes (O Cantor de Jazz, Hollywood Hotel e outros onde participaram músicos de Jazz), não causaram o efeito esperado (note-se a recorrência dos «talvez» e «se»); o teatro, por onde passaram alguns espectáculos de music hall negro, entre os quais a «Revue Negre» ou as Black Folies» e onde terão talvez tocado alguns músicos de Jazz. E se Martins refere que Sidney Bechet entrou em Portugal através da fronteira de Vilar Formoso, não se conhece nenhuma referência ao músico na imprensa nacional (o que é estranho, pois que Bechet era já por essa altura uma estrela de primeiro plano), aventando ainda a possibilidade de Cab Calloway ter tocado em Portugal - e mais uma vez zero referências na imprensa; as Jazz-Bands à portuguesa – Martins enumera as bandas que tocavam nos restaurantes e dancings, em Lisboa, no Porto, em Cascais, apresentando vários temas do seu repertório, entre os quais o «Fado Maria Alice – One-Step» e o corridinho «Esperteza Saloia» (Nossa Senhora de Fátima me valha!!!).

As conclusões de Hélder Martins são pois as lógicas: «Existem dúvidas relativamente ao género musical interpretado pelos Jazz-bandistas portugueses», «… os percussionistas, que nos bailes das bandas filarmónicas das décadas de 30 e 40 tocavam bateria, vulgarmente afirmavam tocar Jazz querendo referir-se ao instrumento e não à música que executavam…», «…pode afirmar-se que em Portugal existiu apenas uma tentativa de executar o Jazz dos “loucos anos 20”» e finalmente «Com estas tentativas de produção jazzística em Portugal não se pode afirmar, sem mais, que o Jazz tenha emergido em Portugal na década de 20».

Fechando o parenteses, e a este assunto voltaremos eventualmente, se para isso tivermos paciência e tempo: A Idade do Jazz-band não é um livro sobre Jazz e António Ferro não tinha – pelo menos tomando em conta as fontes citadas pelos diversos autores que sobre o assunto escreveram – a mínima noção do que era o Jazz.

Deixo para outros o estudo da personalidade, da vida e da obra de António Ferro; a mim só me interessa o texto da conferência. Com o Director do Secretariado da Propaganda Nacional, o Portugal parolo que detractava afundar-se-ia numa longa noite de fado, fandango, corridinhos, paradas da Mocidade Portuguesa, a Nossa Senhora de Fátima (nos valha) e os três pastorinhos – esses também com longevidade assegurada -, e se a Portugal já tinham chegado a bateria e alguns subprodutos do Jazz; passar-se-iam duas décadas - muitos anos, muitos meses e muitos dias - até que assomassem em Portugal os primeiros generosos e perseverantes amantes e divulgadores de Jazz; e mais ainda para que surgissem os primeiros músicos.

O Jazz tardaria.